Há que se esclarecer, a priori, que a matéria trazida à baila não está positivada, de modo que existem doutrinadores, minoria, em verdade, que se contrapõe a possibilidade de se admitir a aplicação de indenizações em razão do abandono afetivo. É o que ensina, por exemplo, Renan Kfuri Lopes, sob o fundamento de que a violação aos deveres familiares gera apenas sanções no âmbito do Direito de Família, refletindo, evidentemente, apenas,no íntimo afetivo e psicológico da relação, não sendo admitida a responsabilização civil.
Todavia, uma vez compreendido os conceitos basilares de responsabilidade civil, abandono e afetividade, as compreensões minoritárias devem ser perpassadas e há que se afirmar que é, plenamente, possível a caracterização da responsabilidade civil dos pais no caso de abandono dos filhos vez que a reparação civil está amparada pelo ordenamento jurídico em toda a sua amplitude, podendo,obviamente, se inserir no âmbito familiar, através da harmonização dos princípios, valores e normas de Direito de família contidas,inúmeras delas,na própria Magna Carta. Esta, em seu artigo 5º assegura, a todo cidadão, o direito a indenização por danos morais o que permite afirmar que a reparação civil é aplicável a qualquer ramo do direito, incluso, aí, o direito de família. Nesta esteia, o magistrado
Alexandre Miguel, expõe que a obrigação de indenizar decorrente de ato ilícito absoluto também é aplicável ao direito de família, vez que considera que a responsabilidade civil invade todos os domínios da ciência jurídica e, tendo ela, ramificações em diversas áreas do direito, não há que se desconsiderar as relações de natureza privada, como aquelas de família.
Se vislumbrará a responsabilização civil por abandono afetivo, quando, da análise do caso concreto, verifique –se os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, quais sejam, conduta do agente, dano, nexo causal e culpa. Assim, se verificada a omissão do pai em ofertar assistência moral ou afetividade ao filho, o que caracteriza a conduta; a efetiva lesão sofrida pelo filho, em razão a ausência dos pais, em ter sido atingindo em sua esfera de interesses no que tange a construção moral e educacional, o que configura o dano; o nexo de causalidade entre a ausência dos pais e os danos sofridos pelo filho; e a culpa (lendo-se aqui como dolo ou negligência, imperícia ou imprudência) restará configurada a responsabilidade civil por abandono afetivo. Destaca-se que a responsabilidade nestes casos de abandono afetivo é considerada subjetiva vez que a análise do elemento culpa, nas relações familiares, é balisar. Trata-se, também, de responsabilidade extra contratual, vez que inexiste ato unilateral negocial, ou de contrato, moral, entre pai e filho, que verse sobre direitos e deveres. Estes decorrem, não apenas da lei, mas do simples fato de se assumir o papel de pais (chama-se atenção para a palavra assumir pois considera-se ai os pais biológicos e os afetivos). Assim, indubitável que este tipo de responsabilidade, extracontratual, é que incide nos casos de abandono afetivo, e deriva, pois, de uma relação que não se permeia no âmbito contratual.
Ao se admitir a responsabilização civil dos pais no caso de abandono afetivo, se admite, em conseqüência, a aplicação de uma indenização em razão de dano moral. Evidente que a aplicação da indenização pecuniária não irá, nesses casos, em hipótese alguma, monetarizar o afeto, objetivando, tão somente, o seu caráter punitivo e compensatório. O que se objetiva, é tão somente, que o abandono afetivo não se torne um fator de inquietação social, uma conduta habitual e despercebida no âmbito jurídico. Evidente que nenhuma decisão judicial irá ter condão de obrigar a oferta de amor de um pai a um filho, quiçá a valor financeiro será capaz de alijar os, eventuais, prejuízos, como psicológicos, por exemplo, causados a um filho, pela ausência de seus pais, todavia, será capaz de externar a reação da justiça para toda conduta que atenta contra princípios constitucionais, legais e morais. A psicanalista e advogada Gisele Câmara Groeninga, neste sentido, defende a existência de um dano psíquico gerado ao filho em razão do abandono afetivo, argüindo que é por meio do afeto que se dá sentido à existência humana, que se aprende a respeitar o outro e que se desenvolve o caráter, de maneira que a ausência destes elementos na criação dos filhos produz seqüelas, emocionais, capazes de comprometer o desenvolvimento da personalidade da criança e adolescente, assim como a capacidade deste individuo constituir, futuramente, uma base familiar regrada pelo afeto, inclusive no que tange aos seus próprios filhos.
Percebe-se, assim, que, embora o Estado não obrigue o pai a amar e a desenvolver o afeto na relação com o filho, admitir a indenização por danos morais decorrente da violação desse direito de convivência familiar, que é da criança e é caracterizada como conduta ilícita, é, certamente, uma tentativa explicita de punir conduta que contraria, repisa-se, o conjunto de princípios e normas norteadores do direito de família.
por Lillian Martfeld Calmon
(trecho extraído do artigo científico RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS POR ABANDONO AFETIVO, produzido para a Universidade de Buenos Aires)